Sob o Céu dos Anônimos

Este núcleo reúne os trabalhos de Ana Emerich, Floriano Romano, Leila Danziger, Livia Flores e Patricia Franca-Huchet.

A condição do sujeito é a existência do outro. Nossos laços estendem-se aos anônimos mais longínquos. Do outro adquirimos a percepção do mundo, a linguagem, as regras sociais, os comportamentos. No contato ocorrem, contudo, sobressaltos, assombros, desvios, perturbações. Se o sujeito se integra, ele também diverge, contradiz, divide, deseja a mudança.

Os trabalhos deste núcleo indagam sobre as vidas anônimas, a inteligência autônoma do outro, sua capacidade de questionar e de se rebelar, de rejeitar a violência e a desigualdade, de imaginar outros tempos e universos sob as revoluções celestes.

Mas em que condições as imagens da arte são radicalmente políticas? Quando representam e evidenciam os sentidos ou quando deixam abertas as significações? Reconhecer a insuficiência da linguagem – suas falhas, lacunas, errâncias – consiste em franquear o espaço anônimo, prosaico e até precário da emancipação.

Ana Emerich

MAPA. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Desenho de território. Imaginário das coisas que nos entram pela boca. Como nomes tóxicos e sonoridades orgânicas compõem traços e desvios, constroem e desestabilizam imagens? MAPA [essa boca que falha com os invisíveis que rumina] investiga o campo sonoro, perspectivas conceituais e elementos da lista oficial de agrotóxicos disponíveis para uso no Brasil. Trabalho com início em 2020, cada trecho dedica-se à correspondente letra do alfabeto e articula sonoridades produzidas por corpos humanos e não humanos, aparatos e aspectos do cenário geopolítico, contextos ambientais e práticas de arquivo. O TRECHO A propõe a justaposição de palavras-tóxicos, sons orgânicos, objetos domésticos, gravações em campo e materiais de acervo pessoal. No TRECHO B Ar, fôlego, palavras, sonoridades da boca e vasilhames químicos compõem um terreno para exploração de timbres e volumes. Para composição de uma peça que busca habitar fronteiras, dilatar temporalidades e modular topologias à escuta, entre névoas e mínimas diferenças. O TRECHO C  aglutina coleta de sons e imagens in situ, no interior do estado de Goiás, no Planalto Central. Porção geográfica com formações rochosas, rios cruciais, marcada historicamente por atividades de mineração, agricultura e pela proximidade com a cidade de Brasília.

MAPA [essa boca que falha com os invisíveis que rumina]
2020
composições sonoras com arquivos: trecho A (10’10’’), 2020; trecho B (10’24’’), 2021; trecho C, 2023 fotografias sobre papel algodão em moldura (140 x 113 cm cada)
Fotografias: Thays Bittar

Floriano Romano

O trabalho é uma ficção construída a partir dos dados particulares de pessoas anônimas que podem ter existido na construção da cidade. Decerto poderia se chamar história do comum, uma voz para colocar em evidência o trabalho de quem se tornou invisível na grande narrativa, mas foi determinante pra história do mundo. A descrição da história das cidades sempre produz uma composição da diversidade de suas cosmogonias, mas muitas vezes nessa trama não conseguimos perceber as sutilezas de seus pontos de contato. Umas mais que outras, cidades são núcleos de hibridismo entre as diversas formações culturais e suas visões de mundo.

Não seria a hora de aprender com a experiência do contato entre essas pessoas e reconhecer seu papel constituinte na nossa própria? Afetos e força de trabalho constituem os laços de amizade e uma economia baseada no esforço dessas vidas. A cidade é o espaço contemplado e que abriga, por meio das memórias coletivas, essas relações de alteridades vividas. Pensar na possibilidade da criação de um território com o som dos corpos, som das vozes, transformando-o em um espaço de atenção, uma justaposição de lugares, em que não se pressinta o local gravado, mas se crie outro lugar, uma paisagem híbrida.

Histórias Anônimas
2022
caixa de som amplificada com tripé, gravações ficcionais e gravações de campo
180 x 200 x 300 cm
3’45’’
Fotografias: Thays Bittar

Leila Danziger

Desde aquele domingo/ de outubro/ vejo a menina// no exato instante/ em que se eleva/
sobre a pedra e o bronze// em aceno:// contramonumento/
à derrota.

Se durante vários anos apaguei seletivamente páginas de jornais, agora as refaço. No centro dessas páginas está uma praça, cinemas esquecidos, um palácio demolido, um monumento, uma espera e, sobretudo, um gesto realizado por uma menina que se eleva como um contramonumento à derrota daquela noite, de tantas noites. No início, há uma foto trêmula, feita quase às cegas, sem qualidade ou definição. No início – novamente, porque são muitos os inícios –, há um desejo de escrita, inseparável do desejo de imagem (do desejo da imagem da página, essa quase obsessão).

A menina que acena na Cinelândia, sobre o monumento ao Marechal Floriano, é minha vaga heroína, com sua silhueta frágil e rosto indefinido (o que a resguarda e protege das identificações sempre policialescas). Não cesso de tentar refazer seu aceno em texto-imagem, em imagem-texto. Preciso vê-la de novo e de novo, sustentar seu gesto, para que ele dure e se desdobre, em outros tempos a vir.

Papéis de um Dia (Cinelândia)
2019-2022
tinta gráfica sobre papel Hahnemühle (65 x 50 cm cada)
fotolitografia sobre papel Arches (50 x 37 cm cada)
cerca de 60 elementos
Fotografias: Thays Bittar

Livia Flores

Eles riram, 2019-2022 e Pedras, 1993-1994, os dois trabalhos que ora se apresentam coletam elementos como partes de séries abertas, potencialmente infinitas como as horas – título que nomeia o conjunto. São trabalhos arquivistas de si; recolhem os rastros do próprio labor em ruína. Em comum, a referência ao tempo – o tempo em que vivemos e o tempo manifesto nas marcas da sua passagem sobre as matérias que ali comparecem: pedras de gesso, folhas de jornal. Que silêncios e que palavras soletram? E-l-e-s-r-i-r-a-m. 80 desenhos em guache preto cobrem folhas de jornal em memória aos 80 tiros disparados por uma unidade do Exército sobre o carro do músico Evaldo Rosa e sobre o catador Luciano Macedo, que em vão tentou socorrer a família alvejada a caminho de um chá de bebê num domingo de sol em Guadalupe, Rio de Janeiro, 7 de abril de 2019. “Eles riram. Chamei eles de assassinos e eles riram.” O testemunho de Luciana Oliveira, viúva de Evaldo, é a manchete única dos diários impressos. Todo dia. Eles riram. Placas de gesso expostas ao tempo constituem a série Pedras. Pedras é nome genérico para uma forma-espelho; inclui Pedras Candelária e Pedras Vigário Geral, que remetem a duas chacinas ocorridas no Rio de Janeiro no ano de 1993. Partidas pisoteadas recobertas por outras camadas de gesso guardadas expostas – ao tempo, ressurgem – à flor da pele.

Pedras
1993-2021
placas de gesso
33 x 23 x 4 cm (cada)
Eles riram
2019-2022
guache preto sobre folhas de jornal
série de 80 desenhos
31,5 cm x 55,5 cm (cada)
Fotografias: Thays Bittar

Patricia Franca-Huchet

Meu campo de atuação deseja afirmar o valor do objeto artístico como objeto de conhecimento dentro da própria área e nas suas conexões transdisciplinares: história, literatura, psicanálise e, também, antropologia do visual. Investigo um certo funcionamento da produção das imagens artísticas. A narrativa é um dispositivo muito relevante nesse contexto, e sabemos que grande número de artistas a utiliza como plano afirmado para trabalhar com o dentro-fora da arte. Nas últimas décadas, a narrativa foi a estrutura de um expressivo número de objetos culturais. Esses objetos, íntimos do ambiente cultural e social, demonstram grande proximidade com a antropologia, que aprofunda a orbe da função narrativa, produzindo o retorno da memória e da cultura em processos subjetivos; objetos que colocam em cena conflitos e comportamentos. Mostro aqui a montagem Temporais em três momentos. O primeiro é um jornal no qual apresento um longo trabalho com a memória do personagem Antígona, em uma forma de ensaio visual e textual envolvendo, também, a teatralidade. Revisitar Antígona foi interrogar-me sobre o trágico, seu simbolismo e simultaneamente a sua força como figura do real. Aos poucos, Antígona tornou-se um conjunto de questões, e a natureza da narrativa permitiu a relação causal entre partes, favorecendo inúmeras formas de exibir o processo. O segundo mostra um conjunto de imagens encontradas no Arquivo Nacional. São imagens do século XX de vidas precárias em nosso país. Elas lembram muito as situações que ainda vemos hoje em dia. O terceiro reúne desenhos que fiz durante 2020 no momento mais difícil do confinamento. Oscilando entre o tempo, o nada e a linha, busquei reconstruir pelo desenho espaços da memória.

Miséria à Luz do Sol
2018-2022
fotografias encontradas em visita ao Arquivo Nacional em 2018
intervenções com lápis de cor e vinil
Restituição da Memória Através do Desenho
2020
série de desenhos realizados durante a pandemia
caneta Bic sobre papel Graf it dot
Fotografias: Thays Bittar

No Chão das Diferenças

Neste núcleo encontram-se os trabalhos de Christus Nóbrega, Cristiana Miranda e Rosana Paulino.

A precariedade consiste na condição primária da existência, nossa situação de vulnerabilidade em relação ao outro, outras vidas orgânicas e não orgânicas, mas também ao Outro, à linguagem, ao olhar, às práticas culturais.

Observa-se nos trabalhos deste núcleo um questionamento relativo à distribuição da precariedade da vida. Levanta-se a pergunta sobre como se constituem as diferenças sociais e como se constrói a hierarquia política de proteção dos indivíduos e das coletividades.

A arte e a política têm no sensível seu campo de fundação. Quando aquilo que vemos, sentimos ou ouvimos nos toca, um desejo nos move. Nesse território de afetos, surgem atos, gestos, ações, imagens. Quais deles constituem a política? Quais realizam arte?

Christus Nóbrega

Sou um artista paraibano interessado nas relações entre lugar e memória. Assim, parto de duas dessas vinculações para construir esse trabalho. A primeira é o curioso modo como a palavra Paraíba é utilizada no território do Rio de Janeiro: gramaticalmente caracterizada como substantivo próprio feminino, é subvertida coloquialmente em adjetivo masculino “o paraíba”, corrompendo, além do estatuto da língua portuguesa, o próprio estatuto de quem por ela é nomeado. Ao tirar a grandeza da inicial maiúscula que lhe é devida por direito gramatical e civil (P por p), e acrescentando-lhe um artigo de gênero que não é o seu (a por o), cometem crime linguístico e crime de injúria. A modal subversão linguística esconde violências, apagamento e perversões de estratificação social. Violências que fazem emergir o segundo fato estruturante desse trabalho – o roubo do invento da máquina de escrever criada pelo paraibano padre Francisco João de Azevedo. Apresentada ao Rio de Janeiro durante a Primeira Exposição Nacional em 1861, a máquina foi um dos nove inventos premiados com medalha de ouro entre os 1.136 participantes. Porém, após sucessivas rejeições de apoio para industrialização, o inventor foi dissuadido a deixar levarem o protótipo para o exterior com a promessa de que havia pessoas interessadas em fabricá-lo. Anos depois, Christopher Latham Sholes apresentou como seu um modelo praticamente idêntico à máquina paraibana para a empresa Remington, que o industrializou.

Gráfica Paraíba: Arte em Panfleto
2021-2022
instalação composta por cartazes, panfletagem, bandeiras e livros
dimensões variadas
Fotografias: Thays Bittar

Cristiana Miranda

A Hidra do Iguaçu e Para Focar o Infinito são filmes experimentais realizados em Angola, nas cidades de Luanda, Massangano, Benguela e Chibia sobre os espaços esquecidos da historiografia colonial. Esses filmes são experiências etnográficas em que o entendimento de si é inseparável da investigação sobre o coletivo. Uma experiência de filmar e habitar o estrangeiro que perturba as separações entre o dentro e o fora, o eu e o outro. Enquanto artista viajante experimento a identidade como uma construção, um desafio que só pode ser enfrentado a partir de um vínculo com a memória e com a criação de uma imagem do passado. O cinema experimental é um exercício crítico de pensamento que nos põe em estado de alerta. Os trabalhos que aqui apresento trazem uma proposta de cinema que pesquisa a técnica analógica de filmar e a utiliza como instrumento de investigação da história. Com a revelação manual, a imagem se torna inseparável de sua dimensão corporal, surgindo na tensão física das perfurações da película, nos desenhos sobre a emulsão e nos banhos líquidos do processamento fotoquímico. O caráter evanescente das imagens atualiza no trabalho o esforço perceptivo de ativação de um sentido para o presente, pela recuperação de uma memória do passado.

A Hidra do Iguaçu
2020
filme 16mm finalizado digitalmente
14’09’’
Fotografias: Thays Bittar

Rosana Paulino

As imagens produzidas no Brasil no século XIX e que retratavam a flora, a fauna e as gentes variavam, muitas vezes, entre cartões postais feitos por e para europeus, e imagens pseudocientíficas. No caso das primeiras, são exibidos, em relação à população negra, elementos pitorescos em uma paisagem exótica ao invés de pessoas dotadas de humanidade. Por outro lado, algumas imagens pseudocientíficas, notadamente as produzidas no Rio de Janeiro, traziam em seu bojo a ideia de uma suposta superioridade moral, científica e, por que não dizer, quase divina de uma “raça” sobre as outras. Esta postura reforçou a ideia de um direito natural sobre outras terras e povos, justificando assim o colonialismo, não só o exercido inicialmente nas Américas, mas, posteriormente, na expansão europeia sobre a África. Curioso notar que no Brasil, após a independência e proclamação da república estes conceitos, ao invés de serem debelados, em alguns casos se intensificaram, justificando a criação de um local social para os grupos étnicos não brancos. Cabe ainda, no país, um olhar aprofundado sobre o papel desempenhado pela fotografia e pela ciência e suas representações da população negra,
e como isso moldou e afeta até nossos dias nossa sociedade.

A Ciência é a Luz da Verdade?
2016
imagem transferida sobre papel, colagem e lápis conté e acrílica sobre papel
56 x 42 cm
Fotografias: Thays Bittar